Eu ficava horas e horas ouvindo
as histórias do meu tio Ludgero quando ia com minha mãe à sua casa para visitar
a família dele. Ele gostava de conversar sobre tudo. Política, religião,
relacionamentos. Mas o curioso, que tudo
o que ele contava era o que dizia ter visto. Era daqueles de acreditar nas
coisas que via e percebia. Era um crítico ferrenho de religiões que exploram a
boa fé de pessoas sem entendimento. Homem sincero, bom pai de família, saiu da
roça ainda jovem, com destino ao Rio de Janeiro para ganhar a vida com trabalho
duro. Foi juntando um pouco aqui, um pouco ali, até que construiu sua casa no
bairro da Taquara em Jacarepaguá.
Todos temos um "telhado" a proteger. Não a qualquer custo. Nem sempre podemos impedir que as pedradas nos atinjam. |
À época, o bairro ainda estava
começando. As casas eram construídas aos poucos, tijolo por tijolo. Na rua, a
garotada brincava, fazendo suas travessuras, com brincadeiras nem sempre
aprovadas pelos mais velhos, principalmente naquela época de regime militar. A educação era rígida.
Em sua rua, morava um senhor, bem
idoso. Morava sozinho. E de vez em quando, seu telhado era atingido por pedras
jogadas pelos meninos da rua. E meu tio contava a história. Mas ele não contava
por contar. Queria sempre fazer uma aplicação, ou reforçar uma de suas teorias
com suas experiências e observação da vida.
Um certo dia, esse senhor, já idoso, com dificuldade de andar, apoiado numa
bengala, subiu as escadas cavadas no próprio chão de barro, para falar com os
garotos. Ele já não suportava mais o incômodo do barulho das pedradas em seu
telhado, que já haviam quebrado algumas de suas velhas telhas de cerâmica.
Ao chegar lá em cima, no portão
de madeira com ripas tortas e amarradas com tiras de pano, disse aos meninos:
-Olha aqui, meninos! Se vocês
querem jogar pedra, podem jogar a vontade.
Mas jogue pedras pequenas, por favor... Essas que vocês estão jogando são muito
grandes. Joguem pedras pequenas...
Diante de nossas fraquezas, fazemos concessões |
O meu tio contava, e ao mesmo
tempo eu pensava na maneira como aquele idoso lidou com aquelas crianças
travessas. Não sei se o idoso temia coisas piores das crianças, por isso teria falado com
todo aquele cuidado. A verdade, é que essa fórmula deu certo. Segundo o meu tio,
as crianças nunca mais jogaram pedras no telhado de seu vizinho. Nem grandes, nem pequenas.
Será que essa fórmula daria certo hoje, ao "abrirmos a guarda" para determinadas ações? Eu penso que isso já
ocorre. Mas diferentemente das crianças que se sentiram tocadas com o apelo do
cansado idoso, nós queremos saber até que ponto podemos errar, para não sermos
prejudicados ou punidos. Vivemos buscando brechas na lei, que possam respaldar nossas ações pretensiosas, frias e detalhadamente calculadas. Vivemos no limite e perigosamente entre o bem e o mal; ficamos divididos
entre dois pensamentos e não assumimos a posição que devemos assumir, porque
temos interesse na zona de perigo, porque lá, ainda há algo que nos atrai. Deixamos
de cometer erros, não porque é errado errar, mas por causa das consequências
que esses erros poderão nos trazer. Deixamos de nos posicionar num grupo de
maneira diferente, por medo das represálias ou da rejeição. Nesse ponto,
partimos para a defesa: “ouça, fique
entre eles; faça a política; você não precisa aceitar tudo o que fazem, mas
fique lá, porque você precisa”. Noutros momentos ouvimos, como se fosse a
voz daquele idoso com as crianças, talvez por temer uma reação mais agressiva: “peque, mas peque um pouquinho; se pecar
muito vai chamar a atenção; se quiser
beber, beba, mas beba só um pouquinho”.
De chefe para subordinado: “Quer reclamar, não fale com todo mundo; assim você me expõe; eu sei que você tem razão; quer reclamar, reclame só um pouco; dê uma maneirada”.
De chefe para subordinado: “Quer reclamar, não fale com todo mundo; assim você me expõe; eu sei que você tem razão; quer reclamar, reclame só um pouco; dê uma maneirada”.
Nem sempre ficar com a maioria é satisfatório |
Dá para perceber, que em muitos
aspectos da vida, precisamos manter um discurso ameno, ou relativizar certas
coisas para sermos aceitos ou para a nossa própria defesa. É assim que acontece. O tratamento sincero é
chocante, porque não estamos sendo educados e ensinados a aceitar as coisas
como são, apesar do discurso de que ser diferente é normal. Não estamos aprendendo a tratar coisas
pontuais de maneira inegociável e respeitosa. Tentamos barganhar com a consciência,
simplesmente para estarmos bem com todos, e, por fim, conseguir um meio de nos justificarmos diante de nós mesmos, ao admitir: “Eu errei, mas foi só um pouquinho; ah, eu
bebi, mas foi só um pouquinho para não fazer feio; eu pequei, mas não provoquei
nenhum escândalo”.
Onde impera a lei do mais forte,
estar do lado do forte é livrar a própria pele. É assim que nos comportamos em
muitas situações. E, muitas vezes, pisamos sobre os nossos princípios. E aquela voz, sempre dizendo: Quer jogar pedra? Jogue. Mas jogue pedras menores!
Todos temos um "telhado" a proteger. Não a qualquer custo. Nem sempre podemos impedir que as pedradas nos atinjam. Proteger-nos de pedradas, em alguns casos, pode significar ignorar nossos princípios, relativizar e fazer concesões daquilo que não devemos negociar. Quando escolhemos viver sem levar pedradas, podemos, do mesmo modo, desejar uma vida sem propósito.
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