Eu estou aqui, vendo a noite chegar. Ao meu lado, garotos como
eu, do mesmo jeito. Sem banho, sem comida, sem fome, quase sem corpo. Estou
quase sumindo dentro de minhas roupas largas, rasgadas e sujas. Mas eu tenho um
sonho! Só tento pensar em coisa diferente das coisas que vivo agora. Eu tento
encontrar força, e a busco do lado de dentro da janela. Já chutei minha latinha
para longe, e joguei aquelas pedras amareladas lá dentro do rio.
As pessoas estão
passando por aqui para irem embora para casa. Elas passam ao longe, apressadas.
Acabaram de descer do trem e agora atravessam
a rua depressa. Ninguém parece me ver aqui. E os que veem, se desviam.
Algumas parecem ter voltado do trabalho. Outras devem ter
voltado sem conseguir trabalho. A expressão no rosto delas não é das melhores.
Deve ter sido um dia difícil. Vejo uma senhora, com uma criança de colo,
contando moedinhas para pagar o ônibus. Um cadeirante é conduzido por alguém,
no momento de atravessar essa avenida movimentada! Não vejo paz nos olhares.
Puxa vida, agora um idoso quase foi atropelado, bem na
faixa de pedestre por uma moto que avançou o sinal bem ali na frente! O barulho
da sirene do carro da polícia vem abrindo caminho, em alta velocidade
perseguindo aquela moto. Eu não sei o que foi, mas parece assaltantes em fuga.
Eu estava cansado. De
tanto observar tudo aquilo, minhas energias pareciam sugadas. Reclinei a cabeça
no canto da porta de uma loja que acabou de fechar, depois de mais um dia de
expediente. O último funcionário acabou de sair. Parecia ter medo de mim, ficou
desconfiado. Passou rápido pela porta lateral falando ao celular, dando uma
olhadela em minha direção; desarmou o alarme do carro, abriu a porta e foi
embora.
Agora, exausto, eu
fechei a minha porta sem nada comer, sem ninguém a me receber, a não ser eu
mesmo; não sei se haverá quem se importe com isso. Talvez sim, talvez não. Três
vezes por semana vem um grupo aqui oferecer
um sopão; eles falam de Jesus, me falam da luz, mas ainda não a vejo.
O que eu quero, é que a noite passe logo e ver o dia
amanhecer de novo, e que tudo o que vivo por aqui, seja apenas um sonho
ruim.
Eu fechei a minha porta agora, porque tem
gente que acha que sou louco, mas o que eu quero é compartilhar um pouco do que
sinto, do que acho, do que quero, do que imagino...Lá do lado de
fora, há muita coisa confusa.
Mas agora, estou fechando as janelas também. Ninguém mais
entra por elas. Ninguém poderá abri-las, a não ser a minha própria vontade. Fechei
as frestas da luz que ainda restam por aqui e que me furtam a minha intensa e tão linda imaginação. Aqui do
lado de dentro tem luz, mas do lado de fora, ninguém pode ver o que vejo agora!
Aqui do lado de dentro, tudo é de verdade. Ninguém diz sim,
quando quer dizer não; ninguém vende a consciência por um pedaço de pão; as
pessoas são realmente aceitas do jeito que elas são; não existe cortesia
somente para agradar. Por isso, aqui dentro onde estou agora, ninguém fala em
diferença, em preconceito, em raça, em cor, porque tudo é perfeito, sem emendas
ou rasuras; tudo se completa de verdade, sem arranjos. Porque todos são
realmente iguais, aqui, dentro de minhas janelas!
As crianças
brincam na rua, sem medo dos carros, nem dos moços, nem dos velhos; correm,
pulam e não se machucam; tem banho, tem comida, tem escola, tem lazer, prazer e
sonho. Seus pais não se preocupam: daqui a pouco elas voltam para casa!
Suas casas não tem grades nas janelas, nem câmeras de segurança, porque tudo ali é seguro. Elas tem cobertores bem quentinhos, um sorriso,
uma oração; um beijo, um queijo quente, um pai presente, uma mãe amorável!
Enquanto estou com as janelas fechadas, eu me vejo nessas crianças, me
transporto nas asas da imaginação. Eu poderia ser como uma delas, mas estou
aqui, com as janelas fechadas, sonhando!
Quando abro a porta para dizer o que vejo, dizem que estou delirando...
Aí, de novo, novo
fecho a porta e as minhas janelas. Sinto a minha respiração. Ouço o raro cantar
dos passarinhos que voam por aqui; os ruídos dos carros do lado de fora, aos
poucos vão sumindo, os latidos dos cachorros, vozes e ruídos dos calçados
daqueles que por aqui passam...
Agora, estou num lugar diferente. Caminho lentamente pelas
ruas, ando sempre para frente. Não quero
voltar. O guarda da esquina me dá um
sorriso, se achega e pergunta:
-Não preciso de nada, só estou dando uma olhada!
Eu caminhava sozinho, mas não me cansava. Não vi mendigos nas
praças e calçadas. Crianças abandonadas? Que nada! Os idosos que encontrava me
olhavam sorridentes, pareciam bem contentes, sem bengalas nas mãos.
As
vezes me dava vontade de abrir as janelas para ver o lado de fora, mas não
tinha coragem. Lá fora tudo me assustava, me causava medo, espanto e pavor. Do lado de dentro, era tudo calmo, tranquilo,
diferente. Assim, preferia manter minhas janelas bem fechadas.
Do
lado de dentro, o ar era puro; ninguém tinha medo do escuro porque a luz
irradiava por todos os lados, refletindo em cantos dourados...
Do lado de cá das janelas, eu não ouvia gemidos, nem choro; nem
imagens de horrores nos corredores da dor
dos noticiários da televisão. Televisão? Lá, eles não tinham nada mais a
dizer! Denúncias, não faziam sentido; fofocas e novelas não davam audiência! Por
dinheiro ninguém matava, ninguém morria. Ninguém esnobava. Quem para isso
ligava? Eram todos iguais.
Por uma carteira ninguém era preso; ninguém prendia, ninguém
soltava. Por justiça, ninguém lutava, todos viviam; porque todos aprenderam
falar a linguagem do amor e da fraternidade. Mas por que não acreditam no que eu vejo? Se do lado de cá
posso ver tudo de novo acontecendo e, a cada dia, algo bom se fazendo...
Mas não estamos todos do mesmo lado? É que nem todos tem bom grado pra
fazer tudo mudar. Se o que é bom pensamos, o que é bom façamos! Se tudo é
possível aqui, é possível lá, porque lá e aqui, será o mesmo lugar!
Se eu pudesse, traria todos para cá, pegando-os pelas mãos e
adentrando-os em minhas janelas, mas quem aceitará? Assim, o lado de cá da janela, seria também o
lado de lá, de verdade!
Quando eu abrir a minha porta outra vez, eu quero gritar, bem
alto para todos que ouvem: se eu consigo
imaginar, é possível viver. Tudo o que preciso já existe. Seja lá dentro ou
aqui fora. Basta pôr as mãos em obra. O que se planta ainda nasce; o que se faz
é o que acontece. E há quantos ainda
plantando vento e colhendo tempestade. Quero plantar amor para florescer a
caridade.
Mas
as luzes de fora, tentam apagar o que se passa do lado de cá das minhas
janelas. E muitos ainda vivem dizendo:
-Cai
na real, cara! Tem que matar pra não morrer; tem que roubar para viver; tem que
mentir para crescer! Não é assim que funciona?
São luzes gritantes, são trabalhos constantes de muitos
relutantes, brigando sem saber contra o que lutar!
Quem é o algoz? Já ouviu sua
voz?
Do lado de lá, eu entro em “parafuso” por
discursos difusos, que de muitos esfriam a vontade de viver,
vencer; de fazer diferente, de pensar em mudança que começa do lado de dentro.
-Não adianta fazer nada. Tudo é assim mesmo! – ainda dizem.
Mas para
que desejar? Para que sonhar se não praticar? Eu não posso viver sozinho do
lado de cá das janelas num mundo ideal, sem torná-lo real...
Vejo que não posso convencer. Quando mergulho aqui dentro,
vejo tudo diferente, que do lado de lá, pode tornar-se permanente. Há alguém
que acredite? Agora farei diferente. Não abrirei mais a porta. Não gritarei
aos outros sobre tudo o que vi. Sairei pelas janelas para começar a agir.
Foi um sonho que vivi? Sim, mas agora eu preciso ir. Eu vou
me levantar. Vou sair daqui! O que eu sonho é possível. O que eu preciso para
alcançá-lo já existe. Está tudo aqui, e começa agora. Estou me levantando, eu
preciso ir, para continuar!
Quero ser bom para mim mesmo e que, o que eu fizer, seja bom
para todos ao meu redor.
Exercitar
a paciência, agir com coerência, multiplicando minha crença em algo melhor
existe. Eu já começo ver. Estou indo ao seu encontro. Tudo o que preciso, está
aqui, do lado de dentro. Estou abrindo as janelas, deixo voar meus pensamentos,
ganhando formas e cores, odores e sabores, porque a vida que imagino é assim, e
para mim assim será. Estou voando pelas janelas, ganhando o mundo, construindo
a minha vida, trazendo para mim o futuro que ontem a noite passou por aqui!
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